Carta de um Servidor - Uma jornada pessoal e profissional - Roda de Conversa

30/09/2025

A Dor, o Ofício e o Sindicato: Um Convite à Construção de um Espaço de Cura e Resistência Coletiva

Prezados(as) colegas servidores do Judiciário Paulista,

A dor que muitas vezes silenciamos nos corredores dos fóruns, nas pilhas de processos e na tensão diária do nosso ofício não é uma experiência isolada. Ela é um sintoma, uma manifestação de um sistema complexo que, embora busque a justiça, pode paradoxalmente gerar um profundo "mal-estar na civilização" em seus próprios operadores.

É por isso que, em uma parceria estratégica com o SINDIUNI-SP, representado pela nossa presidente Helen, estamos abrindo um espaço fundamental: um convite à escuta, à solidariedade e à construção de uma resistência coletiva.

Uma Jornada de Dor e Descoberta no Coração do Judiciário

Meu nome é Péter, sou servidor do TJSP desde 2016. Minha história é a de um servidor com quase uma década de dedicação ao TJSP, em uma vara cumulativa na Comarca de Arujá, com a formação robusta que nossa carreira exige: graduação em Direito, pós-graduações em Direito Público, Infância e Juventude e investigação criminal com ênfase em neuropsicologia. No entanto, foi uma experiência de sofrimento intenso e perseguição na Comarca que me fez questionar meu lugar e minha sanidade nesse "campo de batalha".

Em agosto de 2020, assumi novas funções logo após retornar de uma internação de 22 dias por COVID, com 7 dias de entubamento. A experiência de quase morte me trouxe profundas reflexões, mas não havia tempo. A unidade encontrava-se com muitos atrasos, nossa equipe estava fragilizada psicologicamente e a pressão era imensa. Havia também alta litigiosidade entre os advogados da Comarca e a equipe, tanto decorrente do próprio cenário pandêmico quanto de uma nova e necessária organização cartorária introduzida pelo magistrado à época.

Em meio e ao final da pandemia, a sobrecarga de trabalho somou-se a esse cenário de conflito. Sentindo-me acuado e sem saída, busquei, como muitos, o auxílio da Diretoria de Apoio aos Servidores (DAPS). O DAPS é um órgão institucional que busca dar apoio a servidores com demandas diversas, inclusive de assédio moral. Embora a DAPS e a Ouvidoria do Tribunal ofereçam canais de comunicação e palestras sobre saúde mental, minha experiência, e a de muitos colegas, foi a de um atendimento formal, porém desprovido de um acolhimento real e de soluções efetivas para a situação que eu enfrentava. Apesar da boa vontade e disponibilidade das pessoas que me atenderam, a falta de soluções concretas gerou uma profunda sensação de abandono institucional, que se tornou um gatilho para o meu adoecimento.

Fui alvo de nada menos que 6 procedimentos administrativos, no âmbito da OAB, e até 1 Inquérito Policial, simplesmente por aplicar as determinações do próprio Tribunal e do magistrado. Precisei contratar advogado para os casos, fazer anos de terapia, e mesmo assim o resultado foi um mergulho profundo no burnout, uma síndrome de esgotamento extremo que, de acordo com o INSS, teve um aumento de mais de 1000% nos últimos dez anos no Brasil, sendo frequentemente causada por pressão excessiva, carga horária exaustiva e ausência de apoio no ambiente de trabalho. Meu corpo e minha mente sucumbiram, levando-me a um diagnóstico psiquiátrico, medicação e um afastamento temporário.

Foi na psicanálise que encontrei um caminho para me refazer e me blindar. O processo de análise, com o apoio fundamental dos meus colegas de cartório e de um magistrado que me acolheu, permitiu que eu me estabilizasse e, gradualmente, visse a possibilidade de ressignificar a experiência. A psicanálise, para mim, não foi apenas uma terapêutica individual; foi a porta de entrada para um novo campo de estudos, que se aprofundou com a minha formação em andamento em Sociologia.

Tenho plena consciência de que meu caso é apenas um entre tantos. Embora eu tenha contado com apoio na unidade e meus casos tenham tido julgamento justo, sendo todos prontamente arquivados, isso não impediu meu colapso psicológico. Infelizmente, sei que existem situações ainda mais graves. Muitas vezes, não há o suporte necessário, ou a capacitação para que esse apoio seja exercido de forma eficaz. A saúde mental é um tema de enorme relevância no mundo do trabalho, e no Tribunal de Justiça de São Paulo, a situação é drástica. O adoecimento causado pela pressão nos cartórios, gabinetes e demais setores - seja essa pressão oriunda do meio institucional ou das próprias partes e advogados que necessitam do judiciário - é uma realidade latente.

Psicanálise e Sociologia: Ferramentas de Compreensão e Resistência

Nossos problemas não são apenas emocionais; eles são, fundamentalmente, sociais. A psicanálise nos ensina que o sofrimento não está apenas no indivíduo, mas nas tensões entre o ser humano e a sociedade, convidando-nos a mergulhar na "outra cena", aquela do inconsciente, onde as motivações e os conflitos se manifestam para além da racionalidade da lei. Ela não busca isentar a responsabilidade, mas permitir uma "responsabilização subjetiva" e um "manejo do sofrimento" que a dogmática jurídica, por si só, não consegue alcançar.

A sociologia do direito, por sua vez, desvela o Judiciário como um "campo de forças", onde "dinâmicas de poder" e "hierarquias rígidas" se manifestam, muitas vezes gerando "conflitos interprofissionais" e adoecimento. A "luta de classes" silenciosa, descrita por pensadores como Jessé Souza, se manifesta em nosso cotidiano na forma de pressões, assédio e na sensação de que o Judiciário, em vez de ser um espaço de justiça, pode se tornar um agente de opressão contra os próprios servidores.

O que à primeira vista pode parecer uma simples reclamação, duelo de egos ou desentendimento, como a experiência que vivi na Comarca de Arujá, é, sob essas lentes, a manifestação de "conflitos de papéis" e da "luta de classes" que permeiam nossa instituição. A psicanálise, portanto, não visa "acabar" com o conflito, mas instrumentalizar-nos para "entender o que há por trás desses embates", transformando a "angústia em um objeto de reflexão" e o "sofrimento em um diferencial profissional". Essa abordagem nos permite ver o "homem de carne e osso" para além dos conceitos abstratos da lei, como bem apontam os estudos sobre a interseção entre Direito e Psicanálise.

O Grupo de Apoio: Um Espaço para o "Nós" – Seguro e Confidencial

Diante disso, percebi a necessidade urgente de um espaço que não reproduza a lógica institucional, mas que ofereça um lugar seguro e confidencial para a nossa dor. Um espaço onde a solidariedade dos pares possa emergir como uma força de apoio fundamental. A parceria com o sindicato garante a autonomia necessária para que este seja um ambiente de confiança plena, onde a garantia de sigilo absoluto é o pilar.

Assim, em parceria com a presidência do nosso sindicato, surgiu o embrião deste projeto que agora apresento a vocês, meus colegas servidores do TJSP: uma roda de conversa onde poderemos compartilhar nossas experiências, refletir sobre nosso papel dentro do judiciário, mas sem esquecer de quem somos como humanos e como classe. Não se trata de um tratamento psicanalítico e individual, mas acredito que a cura pela palavra, base fundamental da psicanálise, também pode ser aplicada no contexto de grupo com pontos de conexão, sendo instrumento de transformação social.

É por isso que as rodas de conversa serão um lugar de acolhimento e escuta, não de julgamento ou de denúncia formal. Inspiradas em "modelos de supervisão psicanalítica" e "grupos Balint", elas se propõem como um ambiente seguro e confidencial para a "elaboração do sofrimento mental a partir da fala e da partilha de experiências".

Meu papel será o de um mediador, um psicanalista que, tendo vivido o sofrimento dentro do próprio Judiciário, pode ajudar a dar sentido às nossas angústias, sem nunca substituir a análise individual ou as legítimas reivindicações sindicais. É um espaço de "resistência subjetiva", um "contraponto à lógica competitiva e isoladora do Judiciário", que busca o "fortalecimento subjetivo e coletivo" – uma iniciativa que, sem desafiar a instituição de forma direta, "empodera o indivíduo a partir da fala e da solidariedade entre pares".

Este é o começo de algo embrionário, uma iniciativa que busca na união a força para resgatar o sentido do nosso trabalho e da nossa vida, transformando a angústia em reflexão e o isolamento em solidariedade.

Convido cada um de vocês a se juntar a nós. Porque a verdadeira força surge quando percebemos que o nosso sofrimento, longe de ser um sinal de fraqueza individual, é um elo que nos conecta e nos permite construir, juntos, um ambiente de trabalho mais humano e ético. O primeiro passo para a transformação é a escuta. A cura, muitas vezes, começa quando percebemos que a nossa dor é também a dor do outro.

 


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